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Lisboa Medieval

Portas de Santa Catarina

Designada por Porta de Santa Catarina por se situar nas imediações do local da primitiva ermida de Santa Catarina, era uma das mais movimentadas da cerca, não só por ser a única situada no sector compreendido entre a zona do Mosteiro da Trindade e o Cata-que-Farás, mas também por ser através dela que se acedia, por exemplo, a Campolide ou à região de Carnaxide.

Rasgada naquela que ainda hoje é conhecida como Cerca Fernandina de Lisboa, a Porta – ou Portas – de Santa Catarina, com uma localização que corresponde ao actual Largo do Chiado, era uma das 35 ou 38 portas e postigos que permitiam a ligação entre o interior e o exterior do sector ocidental desse perímetro amuralhado erguido entre 1373 e 1375 por iniciativa de D. Fernando.

Designada por Porta de Santa Catarina por se situar nas imediações do local da primitiva ermida de Santa Catarina, era uma das mais movimentadas da cerca, não só por ser a única situada no sector compreendido entre a zona do Mosteiro da Trindade e o Cata-que-Farás, mas também por ser através dela que se acedia, por exemplo, a Campolide ou à região de Carnaxide. Talvez por isso tenha sido erguida com um cuidado muito particular de modo a torná-la mais resistente e, tanto quanto possível, impenetrável. Daí que estivesse reforçada, no exterior, por uma barbacã e por um fosso, que se estendiam para norte e para sul, paralelamente ao lanço ocidental da cerca.

Segundo Vieira da Silva, que se baseia na planta de João Nunes Tinoco, de 1650, a porta era constituída por um recinto com 20m x 22m, provavelmente sem cobertura, no interior do qual existia um corpo ou edifício pentagonal e que aquele olisipógrafo não conseguiu interpretar. A entrada – pelo exterior – estava ladeada por duas torres, aliás, conforme se observa no desenho de Leiden, do século XVI, pese embora o facto de a torre norte não constar já da planta de Tinoco, pois tinha sido demolida em 1577 para a construção da Igreja do Loreto. Quanto à torre sul, ainda representada na planta de 1650, foi derrubada apenas em 1699 para a edificação da igreja da Encarnação. E se esse recinto tinha apenas uma porta para o exterior da cidade, já para o interior estava originalmente rasgado por duas aberturas.

Ainda que aquelas torres tenham sido derrubadas, como vimos, em finais do século XVI e em finais do século XVII, a porta propriamente dita manteve-se em funcionamento até 1702, altura em que foi totalmente removida para facilitar a circulação.

Contudo a configuração da Porta de Santa Catarina poderá, no entanto, ter sido algo diferente daquela que é proposta por Vieira da Silva. Na verdade, a representação quinhentista da cidade, da autoria de Jorge Bráunio, apresenta-nos, na mesma, um recinto quadrangular, mas com torres nos seus quatro cantos e, aparentemente, coberto por um eirado ou terraço, mas que o olisipógrafo considera tratar-se de uma mera recriação fantasiosa. Contudo, o facto de a Porta de Santo Antão – construída na mesma altura – apresentar uma configuração em tudo semelhante, leva-nos a manter em aberto a possibilidade de a Porta de Santa Catarina ter um aspecto em tudo semelhante, ou seja, correspondente à imagem transmitida por Bráunio. Aliás, há documentos que apontam nesse mesmo sentido, ou seja, que assinalam a existência de uma terceira torre no corpo do edifício da Porta de Santa Catarina, o que torna essa hipótese ainda mais viável.

Qualquer que fosse a sua configuração, a Porta de Santa Catarina desempenhou um papel de enorme importância durante o ataque castelhano a Lisboa, em 1384, tendo sido aí, no dia 28 de Maio, que se desenrolou um dos episódios mais dramáticos do cerco. Tudo aconteceu quando as forças comandadas por Juan I, acabadas de chegar às imediações de Lisboa, tentaram forçar a entrada na cidade, tirando partido do facto de aquelas portas se encontrarem abertas para permitir a reentrada na cidade dos combatentes que o Mestre de Avis tinha colocado no exterior para travar a progressão do exército inimigo. E foi também contra a Porta de Santa Catarina que, no dia 27 de Agosto, foi lançado um ataque de diversão, enquanto decorria, através do Tejo, uma tentativa de captura das galés portuguesas varadas na Ribeira.

O papel desempenhado pela Porta de Santa Catarina durante o cerco de 1384 está também patente no facto de ter sido a mais utilizada pelos sitiados para o lançamento de surtidas contra o arraial castelhano instalado em Santos, razão pela qual tinha anexa uma enfermaria improvisada, preparada com “camas e ovos e estopas, e lemçoões velhos pera rromper; e çellorgiam, e triaga, e outras neçessarias cousas pera pemssamento dos feridos quando tornavom das escaramuças”, como regista o cronista Fernão Lopes, de maneira a prestar socorro imediato aos que regressavam feridos dessas operações.

Apesar de a cidade ter já ultrapassado os limites da Cerca Fernandina, em finais do século XV / inícios do século XVI a Porta de Santa Catarina continuava a manter o seu papel como uma das principais entradas em Lisboa, conforme se percebe pelo facto de ter um guarda próprio. São, inclusivamente, conhecidos os nomes de alguns dos homens que desempenharam essa função e cuja remuneração estava a cargo da Coroa: Rui Vieira, em 1496, o seu filho Lopo Vieira, nomeado em 1498 – com um vencimento anual de 3148 reais – e substituído em 1511 pelo escudeiro Álvaro Fernandes, entre outros.

 

Miguel Gomes Martins

Bibliografia

MARTINS, Miguel Gomes – Lisboa e a Guerra. 1367-1411, Lisboa, Livros Horizonte, 2001.

MARTINS, Miguel Gomes – A Vitória do Quarto Cavaleiro. O Cerco de Lisboa de 1384, Lisboa, Prefácio, 2006.

SILVA, Augusto Vieira da – A Cerca Fernandina de Lisboa, Vol. 1, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1987, 2ª edição.

Fontes

ANTT, Chancelaria de D. Manuel, Livros 8, 37 e 44.

LOPES, Fernão – Chronica del Rei Dom João I da Boa Memória. Parte Primeira, reprodução facsimilada da Edição do Arquivo Histórico Português (1915), preparada por Anselmo Braamcamp Freire, com prefácio de Luís Filipe Lindley Cintra, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1972.

Tombo das propriedades foreiras à Câmara, Vol. II, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1950.